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A vida do escritor e jornalista Afonso Henriques de Lima Barreto, ou simplesmente Lima Barreto, tem nuances de um filme dramático. A bisavó, nascida na África, foi trancafiada e escravizada no Brasil, e a mãe morreu de tuberculose, quando ele tinha apenas 6 anos. O pai, com doença mental, oscilava do completo mutismo aos gritos alucinantes. Em meio ao turbilhão emocional e à realidade caótica, ele escrevia para se manter alerta, como uma válvula de escape, para não sucumbir ao medo de enlouquecer. 

“Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa”: a frase proferida por ele ilustra sua árdua e melancólica trajetória. Um intelectual negro, com voz dissonante no último país que aboliu a escravidão nas Américas. É considerado por muitos críticos como um dos fundadores da literatura afro-brasileira. Em 2022, ano do centenário de sua morte, projetos e amostras reverenciam o seu importante legado. 

O que este artigo aborda:

Livro e kindle com livro de modernismo
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Triste fim de Lima Barreto

O escritor sofria de depressão, e devido aos delírios causados pelo alcoolismo, foi internado duas vezes no Manicômio Nacional dos Alienados, depois chamado de Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro. Se candidatou três vezes à Academia Brasileira de Letras, mas, vítima de discriminação racial, teve seu pedido negado. Parafraseando a sua obra mais célebre, Lima Barreto teve um triste fim. Morreu precocemente em 1922, aos 41 anos, de colapso cardíaco. Esquecido, na miséria, sem o reconhecimento que tanto almejava.

Em seu diário íntimo, registrou: “Gosto da morte porque ela nos sagra”. Uma frase profética. De fato, o escritor foi incensado após sua morte. Seus romances, artigos, memórias e crônicas são aclamados. Atento à realidade, era engajado. Com aguçada visão crítica, denunciava as desigualdades, autoritarismo militar e injustiças sociais. A temática racial tem papel de destaque, expõe o preconceito, inspirado nas suas próprias experiências. 

Precursor do modernismo

Considerado o principal expoente do pré-modernismo brasileiro, sua linguagem se distanciava do rebuscamento europeu, se aproximava da popular, com enredos que retratavam o cotidiano da pessoa comum. Pela importância e pelas características, suas obras estão entre as preferidas dos vestibulares no país. 

Hoje, o processo seletivo das faculdades públicas e estaduais é totalmente automatizado. O ingresso é feito pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que se baseia nas notas do Enem para classificar os candidatos. O simulador SiSU é gratuito para que os estudantes possam simular suas chances de ingressar nas universidades, e a seleção é realizada duas vezes ao ano. As obras de Lima Barreto são leituras obrigatórias para quem deseja um bom desempenho. Confira o resumo de cinco livros que costumam aparecer nas provas. 

Triste Fim de Policarpo Quaresma

A sua obra mais renomada nasceu em forma de folhetim, em 1911, e só foi transformada em romance em 1915. É dividida em três partes, cada uma com cinco capítulos, com conflitos centrais. Na primeira, o conflito é cultural, na segunda é agrícola e na terceira é político. A narrativa em terceira pessoa é instigante e convida o leitor à reflexão. O narrador é onipresente e onisciente, conhece os pensamentos mais recônditos do personagem.

Quaresma é um funcionário público idealista, nacionalista exagerado, com uma visão romantizada do Brasil, que o leva a ser ridicularizado e traça o seu trágico fim. Uma figura ingênua, que sonha em transformar a realidade do país, semelhante a Dom Quixote, personagem escrito por Miguel de Cervantes. Chega a propor uma volta às origens, que a língua oficial fosse o tupi-guarani. Depois, se dedica à agricultura, mas sua plantação é devorada pela “praga das saúvas”, uma metáfora aos políticos brasileiros.

O livro pertence ao pré-modernismo, período iniciado em 1902 e que acaba em 1922, com a Semana de Arte Moderna. Apresenta uma profunda crítica sociopolítica, com uma visão antirromântica da realidade. Com ironia, o autor denuncia a desigualdade social, que o governo cobra altos impostos, mas se omite diante da pobreza. 

Clara dos Anjos

Lima Barreto concluiu o livro no ano de sua morte, em 1922, mas só foi publicado postumamente, em 1948. Mais de um século depois, ele se mantém atual ao retratar o racismo arraigado, a misoginia e o lugar ocupado pela mulher negra na sociedade. O Brasil é um país de muitas Claras.

Escrito em terceira pessoa, o narrador é onisciente e opinativo. A personagem que dá nome ao romance é uma jovem pobre de 17 anos que mora no subúrbio carioca. Única filha sobrevivente de um carteiro e uma dona de casa. A moça é seduzida por Cassi, um músico branco, com melhor condição social, que a engravida e abandona. Desiludida, humilhada, compreende o seu lugar na estrutura social, e no final do livro diz à mãe: “Nós não somos nada nesta vida”.

O cemitério dos vivos

A obra inacabada foi publicada após sua morte, com base em seu diário. Apesar de usar um personagem fictício, é nitidamente influenciada pelas experiências dolorosas do autor, nas duas vezes que esteve internado no Hospício Nacional dos Alienados, entre 1914 e 1919.

O narrador-protagonista Vicente Mascarenhas é um alcoólatra, que é internado em um hospital psiquiátrico, com a vida marcada por tragédias pessoais. O título do romance já faz uma alusão ao que são os manicômios no início do século XX: cemitérios dos vivos. É uma dura crítica à maneira como os doentes mentais são tratados dentro das instituições psiquiátricas. Relegados à margem invisível da sociedade, são despersonalizados: “Tiram-nos a roupa que trazemos e dão-nos uma outra, só capaz de cobrir a nudez, e nem chinelos ou tamancos nos dão”.  

Recordações do escrivão Isaías Caminha

Primeiro romance de Lima Barreto, publicado em 1909, tem referências autobiográficas e retrata de forma pungente o preconceito racial, o mesmo que impediu a ascensão social e profissional do autor. O personagem principal Isaías trabalha na redação de um jornal, mas, apesar da competência e cultura, devido à cor da sua pele, estava condenado a uma posição social limitadora. Uma engrenagem excludente, que evidencia as estruturas racistas que o escritor denunciava. O livro mostra, também, a aliança da imprensa com as elites e o poder de manipular a opinião pública. 

Numa e a Ninfa

A história foi escrita em apenas 25 dias, logo após Lima Barreto sair da primeira internação no Hospício Nacional dos Alienados, em outubro de 1914. Lançada inicialmente em forma de folhetim pelo jornal A Noite, foi publicada como livro em 1917.

Numa Pompílio é casado com Edgarda Cogominho. É um deputado medíocre, eleito pela influência do sogro, um senador renomado. Incompetente, não apresentava bons projetos, até que um dia precisou discursar e sua culta esposa encontrou a solução: começou a escrever seus discursos nos bastidores. Ele passou a ser considerado brilhante, com opiniões abrangentes sobre tudo. Símbolo de boa oralidade, seu sucesso despontou. Até que, em uma madrugada, descobre pela fresta de uma porta que os discursos eram escritos pelo amante da esposa, o primo Benevenuto. Pensou em matar os dois, mas voltou silenciosamente pé ante pé para dormir tranquilamente no seu leito. Aceitou a traição em troca da possibilidade de uma carreira de prestígio.

O romance satírico faz uma crítica à meritocracia, aos vícios de uma sociedade alicerçada nas aparências, à hipocrisia institucional, à distribuição de cargos em troca de favores, à injustiça, ao papel da mulher na sociedade e aos privilégios dos militares.  

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